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Karl Elsener e a história do canivete suíço

Karl Elsener (1860-1918)

Ibach é uma pequena cidade Suíça famosa por suas paisagens encantadoras, pelas suas casas de arquitetura teutônica muito particular e pela presença forte de um exército de cuteleiros que fizeram fama internacional a partir da ideia originalíssima de um perspicaz profissional chamado Karl Elsener.

Nascido na década de 1860, Elsener completou seu aprendizado de cutelaria na cidade de Zug, especialmente se dedicando ao fabrico de facas. Era um trabalho modesto numa época em que a Suíça apenas possuía uma história de resistência à sua incorporação pelas nações vizinhas da Itália, Prússia e França, cuja economia era muito pouco sofisticada e não apresentava os altos índices de desenvolvimento hoje alcançados. Em geral, o país era considerado no alvorecer do século XX como um dos mais pobres da Europa. Pela tamanho diminuto do seu território, pela ausência de riquezas minerais e/ou vegetais, pelo clima em algumas partes rigoroso durante quase todo o ano, restavam poucas opções de trabalho que não os que envolvessem tecnologia para transformar matérias-primas em produtos acabados. Não à toa o suíço passou a ser associado à sabedoria no manejo de produtos brutos para transformação em objetos altamente sofisticados, já que tinha de usar seus conhecimentos para produzir riquezas em proveito de sua família e de sua nação.

Uma dessas áreas que historicamente foram exploradas pelos suíços foi a de instrumentos de precisão: relógios, lâminas, ferramentas delicadas, máquinas de altíssima tecnologia agregada, enfim, tudo aquilo que envolvesse delicadeza e complexidade na sua construção. É por isso que no século XX uma nova gama de produtos aparecerá, criando mais um objeto de especialidade no rol dos produtos industrializados suíços: o canivete.

A faca do exército suíço, como ficou conhecido o instrumento desenvolvido por Elsener, não era exatamente uma novidade enquanto canivete: existiam inúmeras marcas alemãs que trabalhavam bem e forneciam instrumentos com lâminas para o exército suíço em grandes quantidades (vide link abaixo). Porém, não possuíam a mesma qualidade que mais tarde a marca de Elsener alcançará, bem como sua simplicidade engenhosa.

A marca de que falamos, fundada por Elsener no período, era genérica, numa época em que o marketing apenas engatinhava. No entanto, o que será desenvolvido por esse humilde cuteleiro pode ser considerado uma das últimas e grandes invenções da Revolução Industrial e do período Vitoriano na Europa.

É interessante notar a figura matriarcal da Sr. Victoria, mãe de Karl Elsener, que lhe prestou apoio na iniciativa do filho abrir uma cutelaria, depois de anos de trabalhos em Zug e no distrito de Tuttlingen, no sul da Alemanha. Como ele necessitava de espaço e dinheiro para abrir a associação e responder a esta demanda do exército suíço, a mãe lhe prestou o auxílio e o apoio, dando-lhe a casa que mais tarde abrigaria a cutelaria Elsener.

Victoria, mãe de Elsener e uma das figuras-chave
do futuro canivete suíço
Eram os canivetes da época confeccionados na maioria das vezes com talas de madeira, com apenas uma mola e se utilizavam, naturalmente, de aço comum para o desenvolvimento da estrutura de suporte e para a criação da lâmina. Dada ferramenta de reduzidas dimensões era de utilidade geral mas especialmente se destinava aos profissionais que lidavam com situação complexas, como trabalhadores braçais e soldados. Portanto, era necessária para complementar o arsenal pessoal dos militares pois, mesmo antes da experiência da I Guerra Mundial, as necessidades em campo de batalha eram inúmeras e a dificuldade de se levar muitos objetos em separado era proporcional. Diversas eram as necessidades em campo e a exigência de prontidão destes profissionais sempre requiriu miniaturas ou ferramentas portáteis que suprissem suas necessidades de uso. O rifle de serviço Schmidt-Rubin do exército suíço, por exemplo, necessitava de uma chave de fenda para sua limpeza e manutenção e os alimentos consumidos durante batalhas e/ou treinamentos em geral era enlatada, o que exigia um abridor eficiente.

Imagine ter de levar uma chave de fenda, uma faca, um abridor de latas, um abridor de garrafas e um punção (instrumento de furar couro, muito utilizado no período em que parte dos fechos não levava plástico, mas pele animal), tudo numa bolsa cheia de outros artigos necessários para a sobrevivência em campo? Dividir espaço para ferramentas, comida, objetos de proteção e abrigo? E como carregar tudo isso sem sofrer um acidente? 

Forçado pela necessidade, Elsener, que já trabalhava em uma oficina própria desde 1884, começou a trabalhar na ideia de um canivete mais funcional e seguro, que pudesse ser fabricado em série, ainda que mais ou menos artesanalmente. Essa tecnologia teve de ser desenvolvida pelo cuteleiro, já que a Alemanha estava anos-luz em sofisticação na produção dos mesmos. Foi então que Elsener teve a primeira grande sacada no ano de 1891: sendo a Suíça um tanto pobre e muitos cuteleiros de sua região trabalharem em suas casas e oficinas de forma artesanal e independente, percebeu uma força colossal estagnada pelas condições do lugar e resolveu dar ordem e organização criando uma associação de cuteleiros. Ainda nessa época a Suíça também padecia de um outro grande problema, que era a imigração massiva de famílias para as Américas e a Austrália, urgindo a necessidade de geração de empregos. Assim, deu-se origem à Associação Suíça de Cuteleiros, que já em seu princípio ganha a concorrência para uma grande entrega de canivetes para o Exército da Suíça, instituição que já há algum tempo adquiria canivetes para seus soldados, mesmo que não o considerasse oficialmente uma arma ou um componente fundamental do conjunto de ferramentas fornecidos ao soldado.

Réplica do primeiro canivete suíço de Elsener
fabricado em 1894.
Com início bem modesto, mesmo a energia que abastecia a cutelaria vinha do rio Tobelbach, que passa próximo ao local da antiga oficina em Ibach. Esta primeira associação, que ainda não tinha se dedicado à construção de canivetes, mas apenas a facas e outros componentes de faqueiros, vicejou por alguns anos, mas praticamente levou Elsener à bancarrota, principalmente porque o ideal fracassou pela desistência dos cuteleiros na manutenção da associação. Foi assim que o último teve de obter empréstimos de dinheiro junto à família no intuito de tomar o fornecimento dos canivetes para o exército, última solução encontrada diante do escasseamento dos recursos. E convém notar que esse dinheiro foi totalmente devolvido para os familiares com juros, e juros compostos conforme fala de um dos descendentes de Elsener: era importante para ele que ninguém tivesse prejuízo por seus empreendimentos e riscos.

O Offiziersmesser, nome do instrumento em alemão, conforme já afirmamos, existia em versões mais rudes com uma única mola, abrigando de forma racional algumas ferramentas destinadas ao uso cotidiano. O exército suíço demandou a fabricação de um grande lote deste apetrecho para entregar a seus subordinados e abriu uma concorrência pública para tal, mas os alemães da Wester & Co. Solingen sempre tomavam a dianteira por não encontrar um concorrente a altura em matéria de qualidade e funcionalidade. Os canivetes, por então, eram fabricados com corpo metálico e exterior em madeira de ébano ou carvalho.

A segunda grande sacada de Elsener foi a seguinte: o cuteleiro desenvolveu uma nova mola que seria suportada por um rebite de latão localizado no centro da ferramenta, podendo servir para dobrar as funções dentro do canivete com eficiência e assim aumentar a segurança do objeto. Onde antes cabia uma série pequena de instrumentos, agora suportava-se um segundo jogo na ponta oposta, abrindo um leque de possibilidades sem onerar o peso e o preço do produto. Em idos de 1891 ele patenteou o projeto e conseguiu vender para o exército de seu país a ideia que aqueles canivetes substituiriam com eficácia o apetrecho produzido na Alemanha, o que de fato se deu. E assim nascia o Suiss Army Knife.

As divisórias entre cada ferramenta antigamente eram confeccionadas numa liga de níquel-prata, mas a partir da década de 1950 foram substituídas pelo levíssimo alumínio, cuja tonalidade e durabilidade harmonizam perfeitamente com o aço inox. Aliás, o nome da empresa que primeiramente era denominado Elsener, passou a ser chamado Victoria em homenagem à mãe do cuteleiro, falecida em 1909, já ai adotando a cruz suíça ornada com um escudo a fim de já então demarcar o território da marca e se diferenciar das imitações e versões piratas do projeto que começaram a surgir copiosamente. E depois, com o surgimento do aço fortalecido por um processo anti-corrosão, surge o inox (de inoxidável, em francês), partícula que será agregada ao Victoria em 1921 para fazer surgir a Victorinox.

Antigo exemplar do canivete de Elsener. Mais tarde ele
será o pioneiro na introdução de um modelo com talas de
plástico injetado (em PVC).
A originalidade da invenção era gigantesca e praticamente todas as outras fabricantes suíças incorporaram rapidamente a ideia, notadamente a Wenger e a Swiza. Já em 1908, a empresa suíça de talheres Paul Boéchat & Cie, que mais tarde se tornou Wenger, recebeu seu primeiro contrato dos militares suíços para produzir canivetes semelhantes, numa estratégia do governo de dividir os pedidos entre a empresa de Elsener e a do ministro Theodore Wenger, de Delémont, no Cantão de Jura. As empresas passaram a se diferenciar principalmente pelo uso dos slogans "A Faca Original do Exército Suíço" pela Victorinox e "A Faca Genuína do Exército Suíço" pela Wenger, e pelos diferentes formatos das cruzes utilizados nas talas. As ferramentas, com o tempo, também foram adquirindo crescente diferenciação e cada empresa patenteou uma série destas.

Retornando à história do fundador, de 1912 a 1918 Elsener foi membro do parlamento cantonal do cantão de Schwyz . Ele se casou três vezes. Depois dele, seu filho, Carl Elsener (1886-1950), seu neto Carl Elsener sênior (1922-2013) e seu bisneto Carl Elsener Jr. (nascido em 1958) lideraram a empresa Victorinox, hoje tornada fundação pelos descendentes do primeiro.

Os modelos Victorinox estão disponíveis em 58 mm (2,3 pol.), 74 mm (2,9 pol.), 84 mm (3,3 pol.), 91 mm (3,6 pol.), 93 mm (3,7 pol.), 100 mm (3,9 pol.), 108 mm (4,3 pol.) e 111 mm (4,4 pol.) quando fechados. A espessura das facas varia de acordo com o número de camadas de ferramentas inclusas. Os modelos de 91 mm (3,6 pol.) oferecem a maior variedade de configurações de ferramentas na linha ou modelo de até 15 camadas.

Hoje são mais de 300 variedades de canivetes (número do ano de 2016), com produção diária que supera as 120.000 unidades apenas de ferramentas diversas (facas, canivetes e outros subprodutos de cutelaria). Aproximadamente 90% de sua produção é exportada para mais de 120 países. São 2000 funcionários, número que cresceu expressivamente com a sinergia criada pela fusão da Wenger no ano de 2005. Conforme notícia de O Globo, metade do maquinário que trabalha na têmpera do aço é de fabrico próprio da Victorinox, com outros 25% comprados e adaptados e outros 25% de maquinaria sem adaptação. A lâmina hoje fabricada com aço de especificação, dureza e pureza precisas conta com uma tecnologia de endurecimento do carbono que é própria da Victorinox e até o presente momento constitui segredo industrial.

A atual fábrica de Ibach partilha automatização com aplicação de trabalho manual em cada etapa do processo, destacando-se a presença masculina nos trabalhos mais robustos de confecção das peças e as mulheres na montagem e inspeção dos canivetes. Esse processo de automação e integração de máquinas mais independentes data de 1931, quando "Carl Elsener II introduz a automação e [...] a empresa Brown Boveri é contratada para instalar a primeira planta de usinagem totalmente elétrica do mundo, em Ibach. Isso significa que todos os canivetes podem ter a garantia consistente de alta qualidade."

A produção e evolução do canivete suíço destinado ao exército daquele país continua e até, recentemente, o governo dos EUA aderiu ao programa já existente em mais de dez países europeus para fornecimento de canivetes para seus exércitos. Aliás, este canivete faz parte do programa espacial da NASA e é presenteado como ferramenta aos astronautas, sem contar a sua presença silenciosa em todo o planeta, pois não somente já esteve presente em expedições desde o Everest até a Selva Amazônica, como também já salvou algo em torno de 10.000 vidas em procedimentos de emergência (somente o que foi computado), sem contar os que não foram noticiados.

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Fontes consultadas:


  1. http://www.blocmagazine.co.uk/swiss-family-elsener/
  2. https://en.wikipedia.org/wiki/Swiss_Army_knife
  3. http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2013/06/1283945-prestes-a-fazer-130-anos-canivete-suico-abre-vinhos-salva-vidas-e-ajuda-no-parto-de-jumentas.shtml
  4. http://mundodasmarcas.blogspot.com.br/2006/06/victorinox-notoriedade-suia.html
  5. https://oglobo.globo.com/ela/luxo/num-bucolico-vilarejo-na-suica-os-bastidores-da-fabricacao-do-canivete-20037747
  6. https://www.victorinox.com/br/pt/Explore/Empresa/Hist%C3%B3ria/cms/history
  7. https://en.wikipedia.org/wiki/Wenger
  8. http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,ERT113191-16642,00.html
  9. https://www.epochtimes.com.br/veja-maiores-mais-antigos-canivetes-mundo

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