Era criança e estudava em um educandário muito tradicional na minha cidade: no dia da pátria nos agrupavam em fileiras indianas e colocávamos nossas mãos nos peitos para cantar o hino nacional, por sinal tocado em uma vitrola inacreditável (daquelas com um megafone acoplado). Seu João era o inspetor e porteiro que nos prendia quando, mais por inocência que malícia, caçávamos grilos nos matagais vizinhos das salas de aula e era ele mesmo, já senhor, que com uma paciência realmente admirável apontava nossos lápis de grafite com seu canivete pica-fumo. Era um modelo cujo cabo plástico imitava madeira e que até hoje é bastante famoso, sendo fabricado até pela renomada Tramontina.
Aquela imagem do Sr. João permaneceu na minha memória por muito tempo, ainda que eu não tivesse até adolescente a vontade de possuir um canivete para uso cotidiano.
De fato, foi em uma feira de ciências de minha escola, no primeiro ano do Ensino Médio, que vi uma novidade: meu professor de biologia foi consertar algo que estava em cima de uma carteira e sacou seu canivete suíço. Daí arrisquei, sorrindo e embasbacado (minha cidade é de interior e aquilo era completa novidade): é suíço? Ele afirmou que era. Fingi não dar mais atenção, mas persegui o professor até a saída e no caminho de volta pra casa pedi para pegar no canivete e ver.
Era brilhante, com talas vermelhas, com um peso razoável e visivelmente suíço. Imagino que era um modelo Huntsman da Victorinox. Dali por diante tomei a resolução de comprar um, custasse o que custasse e muitos anos depois eu o consegui, quando já universitário e com minha primeira bolsa de estudos. Minha família sempre foi humilde e o gasto de dinheiro com um canivete era algo muito discutível para nosso orçamento apertado.
Comprei um Huntsman e com ele permaneço até hoje, intacto e bem usado. Foi o primeiro de outros canivetes que natural e ocasionalmente vieram, a cada um alimentando novas surpresas e experiências.
O canivete para o homem não significa apenas uma lâmina que ele tem junto a si para qualquer oportunidade de uso ou auto-defesa, mas algo muito mais essencial: uma ferramenta, um símbolo, algo que fala de sua história. Infelizmente, nossa sociedade efeminada e desvirtuada pela ausência da Religião trocou o canivete ou a adaga pelo smartphone e isso tem suas considerações e consequências a serem ponderadas, uma vez que sinaliza a civilização menos fabril e mais voltada ao entretenimento que hoje constatamos ao observarmos o que nos cerca.
O canivete não tornará alguém mais homem ou mais super-herói apenas pela sua posse, mas falará aos que o cercam da personalidade de seu dono. Uma medalha na argola, uma lâmina mais gasta, um escariador mais gasto, uma tala mais baça, enfim, o objeto acaba se tornando reflexo de seu dono e contará uma história sua e dele para a posteridade. E isso só é possível porque o canivete suíço é um objeto durável, pensado para ser usado a longo prazo, da mesmíssima forma que os primeiros que foram fabricados.
Acha exagero? Somente quem carrega no bolso uma ferramenta que significa quase um milagre poderá entender e explicar o que é, de fato, um canivete legítimo. Faça sua experiência e partilhe conosco.
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